temos apresentado por diversas vezes textos que tentam esclarecer a situação actual do brasil, com o chamado impeachment ( processo constitucional ou impugnação de mandato da presidenta dilma rousseff). desta vez apresentamos a reflexão rigorosa de anabela fino, que como se costuma dizer conta a história desde o seu início e daí vai desenrolando o novelo.
Para se perceber o que está a acontecer no Brasil torna-se necessário esclarecer um conjunto de questões referidas amiúde sem a necessária contextualização, o que contribuiu, de forma mais ou menos deliberada, para confundir a opinião pública e a que se tome como igual o que é diferente.
Aparentemente tudo começou com a operação Lava Jato, a investigação judicial que pôs a nu um mega esquema de corrupção envolvendo altos quadros da petrolífera brasileira Petrobras, grandes empresas da construção civil, empresários e políticos brasileiros. As denúncias envolvem o Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), de Michel Temer, actual vice-presidente; o Partido Progressista (PP), de Paulo Maluf ; o Partido dos Trabalhadores (PT), que desde 2003 detém a presidência do país, primeiro com Lula da Silva e depois com Dilma Rousseff; e políticos de diversos partidos, como é o caso de Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Os dados vindos a público até ao momento – e as denúncias dos entretanto condenados a troco da remissão das respectivas penas – apontam para a existência de uma vasta rede de corrupção que ultrapassa em muito o esquema montado entre a Petrobas e a empresa química e petrolífera Braskem, uma subsidiária da Organização Odebrecht que actua nos sectores de engenharia, infra-estruturas, indústria, energia, transportes e meio ambiente, e que através das suas estruturas sediadas em paraísos fiscais, como a Suíça e outros, pagava «luvas» aos facilitadores dos seus (altamente) lucrativos negócios. Após a condenação de Marcelo Odebrecht a 20 anos de prisão, a Organização decidiu divulgar a sua lista de «pagamentos» que não tem nada a ver com o financiamento legal dos partidos, o que está a provocar nova onda de escândalos.
O processo político iniciado em 2003 com o governo Lula e prosseguido no primeiro mandato de Dilma, apesar de não ter conseguido alterar a estrutura do aparelho do Estado, não ter tocado no poder económico de forma significativa, não ter avançado com a reforma agrária e de ter recuado nas tímidas tentativas para regulamentar o imenso poder dos media, foi visto desde a primeira hora como uma séria ameaça aos interesses do imperialismo e das forças reaccionárias, que também nunca aceitaram a política de aproximação e integração nos processos progressistas em curso na América Latina e no âmbito dos países emergentes (BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), fora do domínio dos EUA, Enquanto milhões de brasileiros saíam da miséria graças aos programas sociais, a direita encolheu as garras à espera da sua oportunidade. A hora do acerto de contas chegou com as eleições de 2014. Cavalgando os efeitos da crise de que são os principais fautores – aumento do desemprego, subida da inflação, degradação das condições de vida, cortes drásticos nos programas sociais –, as forças mais à direita na coligação governamental, sabotando por dentro o governo de que faziam parte, decidem jogar tudo por tudo na subversão constitucional, ou seja, destituir a presidente num processo político que configura um verdadeiro golpe de Estado. É aí que surge o processo de impeachment em curso, deliberadamente amalgamado com o caso Lava Jato, sem que Dilma Rousseff tenha sido acusada de qualquer crime.
Sobre esta matéria, convém esclarecer:
1 – o pedido de impeachment [processo constitucional de impedimento ou impugnação de mandato] de Dilma Rousseff nada tem a ver com a Operação Lava Jato ou com o combate à corrupção. Os detractores da presidente acusam-na de «pedalada fiscal», o que entre nós pode ser designado por «criatividade contabilística» de forma a não comprometer as contas do governo. A prática, generalizada, ainda que criticável nada tem a ver com corrupção. Vários especialistas na matéria têm feito notar que «as pedaladas não caracterizam o crime de responsabilidade fiscal porque não houve qualquer prejuízo para o erário. As pedaladas configuram um artifício contabilístico, mas o dinheiro não sai dos cofres públicos, então não ficam caracterizados os crimes de apropriação indevida ou desvio de recursos», como afirmou recentemente o reputado jurista Dalmo Dallari;
2 – Cabe ao presidente da Câmara dos Deputados avaliar se a denúncia visando o impeachment é válida; em caso afirmativo, tem de apresentá-la no plenário da Câmara de Deputados, que a encaminha para uma comissão formada especialmente para o efeito. Ouvidas as partes, a Câmara apresenta um parecer sobre o caso. O documento tem de ser votado pelos deputados (513, ao todo), sendo necessários 2/3 dos votos (342) para o processo de impeachment começar efectivamente. Uma vez aprovado o pedido de abertura do processo, este passa para o Senado, a quem cabe o julgamento propriamente dito. Em casos de crime comum, o processo é julgado no Supremo Tribunal Federal (STF). Quando o Senado instaura o processo, o Presidente da República é automaticamente afastado de funções. É necessário que três quintos dos senadores votem a favor do impeachment para que ele seja condenado;
3 – Os crimes de responsabilidade que podem levar ao impeachment estão previstos pela lei, de forma taxativa, pelo que é inconstitucional decretá-lo sem ser provada a ocorrência de tais crimes. É por isso que cabe ao STF, enquanto guardião da Constituição, o dever constitucional de impedir ou declarar a nulidade de qualquer impeachment recebido pela Câmara ou decretado pelo Senado que não preencha os requisitos legais que tipificam os crimes de responsabilidade;
4 – O responsável condenado em processo de impeachment, para além de ser afastado do cargo, pode ainda ficar inelegível por um período que vai até oito anos. Em caso de impeachment do Presidente da República, o cargo é automaticamente assumido pelo vice-presidente (no caso, Michel Temer, do PMDB). Se este também não puder exercer o cargo, quem assume temporariamente é o Presidente da Câmara dos Deputados (Eduardo Cunha, igualmente do PMDB), pois será necessário convocar novas eleições: directas, num prazo de 90 dias, caso o impeachment ocorra nos primeiros dois anos de mandato do Presidente, e indirectas, por votação do Congresso, num prazo de 30 dias, se o impeachment ocorrer nos dois últimos anos do mandato. Em qualquer dos casos, quem assumir o cargo apenas cumprirá o mandato de quem o antecedeu.
Feito o esclarecimento do processo, cabe acrescentar o que disse sem rebuços o senador e ex-candidato presidencial José Serra, que a semana passada esteve em Portugal a participar num seminário dito de «direito» mas que foi de facto de direita: «Nunca acreditei que a Dilma possa perder o mandato por culpa da crise, o que ocorre no nosso país é que o sistema político impede uma mudança de governo sem traumas. Historicamente, as mudanças presidenciais foram por suicídio, renúncia, deposição ou impeachment. O sistema presidencialista não permite outros. O impeachment, portanto, é um recurso político com decorrências jurídicas». Aí está a assumpção do processo político, ou seja, do golpe.
Não por acaso, o juiz do STF Marco Aurélio Mello veio a público na semana passada dar razão a Dilma, ao afirmar que «impeachment sem crime de responsabilidade é golpe», o que é visto como um aviso de que cabe ao Supremo avaliar da legalidade constitucional do impeachment.
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