depois do alvoroço pós-brexit, do muito que já se disse e escreveu, o tempo vai passando, a calma vai voltando e a vida das pessoas continua tal como a da União Europeia, agora preocupada na decisão de dar ou não sanções a Espanha e Portugal por déficit excessivo. mas do brexit talvez valha a pena mostrar um artigo de fundo sobre os porquês e os comos dos resultados do referendo. desta vez a reflexão que deixamos é de marta h. luís.
Brexit
O referendo no Reino Unido é sem margem para dúvidas uma vitória
das pessoas sobre os média e sobre as instâncias europeias e mundiais que
comandam ilegitimamente a política e as decisões dos diferentes estados,
retirando-lhes soberania e independência, retirando-lhes, porque tolhida, a democracia
e a voz do seu povo. A fabricação do consenso à volta da união europeia e
daquilo que têm sido as suas políticas, construída pela comunicação social e
pelas estruturas de poder político, o chamado establishment, de forma a efectivar um controlo social, foi
derrotada no referendo. É precisamente esta falta de consenso que Obama reclama
como explicação para a votação no brexit, ao dizer que a UE “estava a avançar
provavelmente mais depressa do que devia e sem o consenso necessário”. Certo é
Obama saber mais do que ninguém como é fundamental a construção de consensos
para a defesa de políticas, que se de justas fossem não necessitariam de
consensos baseados na formatação do pensamento, feito este da repetição vezes sem
conta das mesmas ideias ou, no caso de mesmo assim existirem dificuldades, na entrada
em acção de outros mecanismos que navegam sob a luz da obscuridade, porque o
controlo social, esse, seja onde for, dê lá por onde der, tem que ser
assegurado. Claramente que a retórica repisada da instalação do caos com a
vitória do brexit foi derrotada. Tal
como a teoria da inevitabilidade, da submissão e de uma realidade catastrófica em
consequência do brexit. Por todo o
lado, as mesmas premonições infaustas, as mesmas advertências, os mesmos juízos
de valor e total arrogância. Mentiam sabendo que mentiam, pois não é o mesmo
Obama agora a vir dizer que as consequências do brexit “não serão catastróficas”?! A vitória do não à EU foi,
sobretudo, uma demonstração de coragem contra a chantagem e pressão exercidas
tanto internamente (morte da deputada trabalhista Jo Cox, recurso a discursos
xenófobos, reaccionários e catastrofistas, exemplos maiores), como externamente,
escandalosamente efectuadas pelo FMI, União Europeia, OCDE, grandes grupos
económicos, capital financeiro, líderes europeus e dos EUA, para citar alguns
dos mais relevantes.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_RIAKvKXSE41lYOZfl2RQJ2m8csHGOZDGOK6wndE8G4Zf02LToWkSibio9OBnxxme_tViiWzeRInx7TSXyXipTHL_p_TD8s-x6RxIyw06J9y1W9TCnkl5SD_IPVNhZGG9ESiPOwI/s200/Brexit-won-580x480%255B1%255D.jpg)
Ao contrário das primeiras explicações simplistas dos
resultados, onde foi evidente a manipulação da sua interpretação ao apresentar
o brexit como o rosto dos mais
velhos, iletrados, retrógrados, nacionalistas, conservadores e oriundos do meio
rural e da massa trabalhadora, explicação aliás que entre nós também colheu
adeptos, leia-se, em atalho de foice, a crónica no DN de Sérgio Figueiredo que à
pergunta, formulada por si próprio, como fica o reino unido que sai, responde,
“dividido”, seguido da evidência dos números, onde a citada visão reacionária,
redutora e preconceituosa é escancarada aos olhos dos leitores. O esclarecimento
e compreensão do porquê da votação ter sido como foi e que relações se
estabeleceram talvez seja obra maior para o nosso cronista, quiçá daqui a uns
anos possamos ter um historiador que lhe faça lembrar o que esqueceu, e se
recorremos agora a Hobsbawm não poderemos fazê-lo depois, mas um passado não
fica sem história e, como disse o mesmo Hobsbawm, terá que ser explicado o
porquê das coisas e como “deram no que deram e como elas se relacionam entre
si”. Tarefa nada fácil nos tempos que correm. Há que procurar outras análises,
longe dos grandes escaparates dos meios de comunicação social e também do olhar
dos dirigentes europeus, uns e outros apressados na agitação e histeria em
volta do triunfo do não. A estes últimos foi vê-los e ouvi-los com ar grave e
sério, uns reclamando rapidez, outros calma, uns consolando, outros acirrando,
uns irrompendo com desorientação, outros com sobranceria e falta de respeito, e
todos evitando por ignorância ou falta de competência, compreender o
significado real do brexit. O modo de
actuar não mudará, a discussão far-se-á nos mesmos gabinetes, as decisões
tomar-se-ão entre os grandes com a Alemanha e a França à cabeça ou não fosse o
núcleo duro da EU a unidade franco-germânica de há muito. Neste particular, os
ingleses foram sempre patenteando relativamente à Europa um certo afastamento,
lembre-se que só em 1973 integraram as instituições europeias e depois por
diversas ocasiões, casos da não adesão à carta social, no tempo do
conservadorismo de Thatcher, ou mais recentemente com a não adesão ao euro, a
desconfiança e oposição foram a nota forte. Entretanto, das instâncias
europeias, espera-se confirmada, que está pelo demissionário Cameron a
oficialização da saída da EU para depois da eleição do novo primeiro-ministro
(em setembro), que o desnorte actual de não se saber quem liderará o processo,
se é a comissão europeia ou o conselho europeu, ou ambos, cesse. Até lá
contentar-nos-emos, e não será pouco, com o sai ou fica da Escócia, com a integração
ou não das duas Irlandas, com a luta interna no partido trabalhista, com o
aparecimento de candidatos a substituir Cameron no partido conservador, com as
ameaças e acções xenófobas, com as pressões das grandes empresas e do lobby
financeiro, e com a discussão de como deverá acontecer o processo negocial com
a UE. Nesta matéria, Merkel não perdeu tempo, bem acompanhada depois por Hollande,
e declarou que “os britânicos não podem querer só o lado bom da EU” e o desejo
de saída agora materializado daquilo a que Merkel chama “família” não pode significar
para o Reino Unido o “esperar livrar-se de todas as responsabilidades mantendo
os privilégios”. Como não podia deixar de ser, estas alocuções, para muitos
verdades incontrovertíveis, têm um impacto incomparavelmente diferente das do
nosso primeiro-ministro António Costa, que afirmou que a “saída deve decorrer
de forma amigável”, não vendo as negociações futuras “como um castigo” à Grã-Bretanha.
António Costa é António Costa e Merkel é Merkel e a chanceler goza de outro
prestígio como podemos reconhecer pela opinião crível de Durão Barroso,
anterior presidente da comissão europeia. Pare ele a srª Merkel é o “ponto de
equilíbrio essencial”, até porque não tem dúvidas que a Alemanha “é o único
país que tem valorizado a Europa”. Caros leitores, não acabaríamos o rol de
citações, estes dias têm sido prolixos nesta matéria, mas começamos a ficar, se
não estamos já, cansados de ouvir e ler tanta arenga. Mais interessante será voltarmos
ao nosso propósito de procurar diferentes análises e outras explicações ao resultado
do referendo, inicialmente proposto, quando Cameron garantiu, fosse ele
primeiro-ministro, um referendo. Seria o referendo da permanência mas afinal
acabou por ser o referendo da saída, e assim o feitiço virou-se contra o
feiticeiro, ou se preferirem, porque isto de rifões, anexins, adágios,
provérbios e outros quejandos, é só escolher, o tiro saiu pela culatra. Regressemos,
sem outras mudanças de direcção, à demanda das explicações. Salientemos uma
leitura baseada num inquérito, “How the
United Kingdom voted on Thursday... and why”, encontrado nas
chamadas redes sociais, que preto no branco pergunta às pessoas por que razão
votou como votou. Eis as respostas: 49% votaram a saída invocando que “as
decisões que afectam o Reino Unido devem ser tomadas pelo Reino Unido”; 33%
disseram que sair da EU “permite recuperar o controlo sobre a imigração e as
fronteiras”. Abre-se um parêntesis para tornar claro que o Reino Unido não
pertence ao espaço Schengen, razão plausível para a Grã-Bretanha não receber,
nas mesmas proporções que outros países europeus, imigrantes oriundos do médio
oriente, nem tão pouco sentir problemas idênticos aos da Grécia. Sobre a
imigração é também oportuno trazer os últimos dados estatísticos que mostram
que no Reino Unido a imigração proveniente da própria EU está a subir, comparativamente
com a imigração fora da EU. Com os olhos postos de novo no inquérito, os
defensores do ficar responderam 43% que a “saída comporta riscos demasiado
elevados para a economia, o emprego e os preços”; 31% referiu que “ficar
permite o melhor de dois mundos: acesso ao mercado único sem Schengen nem Euro”;
17% aludiu ao facto de “saindo o Reino Unido ficaria mais isolado em relação
aos países amigos e vizinhos”. Como se pode ver o rosto do brexit apresenta-se a leituras várias, longe das respostas
simplistas anteriores. Aqueles que puxaram a bandeira incessante da imigração,
quase sempre acompanhada de tiques nacionalistas e xenófobos, perante estes
argumentos ficam sem chão seguro e mesmo dentro das razões do ficar, a EU não
aparece como um mar de rosas onde os britânicos se banham sossegados e tranquilos.
No remain, para empregar vocábulo
apropriado, a visão do caos e catástrofe inevitavelmente triunfou, só que não
tanto quanto era desejado pelos promotores da consulta popular. Não fosse o
homem homem e por isso tão ou mais difícil de se fazer compreender que aos
outros animais, os irracionais, naquilo que são os seus comportamentos e neste
caso das suas decisões, a explicação do brexit
estava dada. Mas as interpretações devem também cruzar, relacionar, interligar,
justapor, outras realidades e estas levam-nos, para além das circunstâncias do
voto, nada despicientes, para as tais questões da idade, habilitação académica,
rendimentos, etc. O nível de complexidade aumenta abruptamente e só o tempo poderá
dar tempo a que outras profundidades sociológicas emerjam. Especulemos por
agora. Diremos que um velho votou como votou porque é saudosista e
nacionalista, num exemplo, ou então porque tem em si ainda a memória dos seus
tempos de operário, das lutas progressitas por melhores condições de trabalho e
de vida, que sente nostalgia por um tempo de solidariedade perdido. Já o jovem
ou homem novo, pode ter votado porque quase todos pensam que o presente é uma
“espécie de presente contínuo”, para citar de novo Hobsbawm, “sem qualquer relação
orgânica com o passado público da época em que vivem”; ou talvez porque não
podem acreditar noutra realidade sem ser o pertencer à UE. Mas há mais. Os
ditos especialistas dos inquéritos veiculam que o voto pode ser “visceral”, em
contraponto a um voto racional. Quiçá este o argumento que faltava para justificar
o voto no ficar, baseado no medo das consequências negativas que o sair
acarretava. Acrescentar hipóteses explicativas é como puxar o fio à meada, mas
parece-nos sobremodo atinente, porque é comummente aceite na literatura como
uma generalização muito poderosa sobre as questões humanas, sempre nebulosas e
profundas, atendermos à chamada “Lei de Murphy”. Dela se diz que se algo pode
dar errado, mais cedo ou mais tarde vai dar. Dito e feito.
Talvez valha a pena debruçar-nos sobre os “feitos” da EU nas
pessoas que nela vivem. É da vida que se vive, ou se sobrevive, porque para
tantos o fardo é demasiado pesado, mas, seja no viver ou no sobreviver, o
quotidiano das pessoas, como reflexo daqueles, é o que mais importa.
Seguramente se pode afiançar que as pessoas que já viviam com imensas
dificuldades pela ameaça do desemprego, ou desemprego efectivo, pelo trabalho
precário, pelos salários baixos, características que sobrecarregam a população
mais envelhecida, da classe trabalhadora, dos meios rurais e com menos
habilitações, continua igual, nem menos nem mais depois do brexit. No momento, perdas só para os grandes magnatas que detêm
quase a totalidade da riqueza do mundo, esses perderam muitos milhões de
dólares no pós-brexit, milhões que de
facto para o comum dos mortais é muito, é tanto que não se imagina, mas que na
verdade só representa cerca de quatro por cento da totalidade dessa riqueza.
Perderam-no na bolsa, no chamado mercado, essa entidade abstrata única no poder
de comando de um país, chefiada pelas agências de notação, que exercem o
controle desse poder. Saberão com certeza as forças do mercado restabelecer o equilíbrio
perdido pelo referendo. Mas não se culpe o referendo, não se caia nessa
insensatez, pois não é causa de problema algum, apenas é um instrumento da
democracia, um direito dela imanado, uma demonstração da soberania de um povo.
Povo este que na sua maioria votou cansado com uma União Europeia anti-social
nos seus mais de 20 milhões de desempregados, onde as desigualdades crescem
diariamente e belicista quanto baste, veja-se o apoio dado às guerras do
Iraque, no Golfo, na ex-Jugoslávia, no Afeganistão. A realidade vem mostrando o
quanto injusta tem sido a EU também para os refugiados. Esmiúce-se o acordo com
a Turquia denunciado por diversas ONG´s e agora tão recentemente mais de 100
organizações de direitos humanos e ajuda humanitária medicina e assistência ao
desenvolvimento, em carta aberta, recusam os planos da Comissão Europeia de
apadrinhamento da imigração, que prevê usar as relações comerciais, fundos para
ajuda e desenvolvimento e outro tipo de apoios e medidas financeiras, para que
haja intermediários que sirvam de tampão para os imigrantes chegarem à Europa,
torpedeando de forma abjecta, os direitos humanos. a notícia é recente, mas a
política leva anos, recordemos em 2008 a declaração final da cimeira social dos povos, que passamos a citar“…rechazamos el proyecto de
Acuerdos de Asociación propuesto por la Unión Europea y avalado por diversos
gobiernos latinoamericanos y caribeños que solo buscan profundizar y perpetuar
el actual sistema de dominación que tanto daño a hecho a nuestros pueblos. La
estrategia de la Unión Europea "Europa Global: Competir en el mundo",
supone la profundización de las políticas de competitividad y crecimiento
económico que buscan implementar la agenda de sus transnacionales y profundizar
las políticas neoliberales, incompatibles con el discurso sobre el cambio
climático, la reducción de la pobreza y la cohesión social. Esta não é a
União Europeia prometida, uma União de estados em pé de igualdade, pacífica,
independente, democrática e social, por isso, numa visão mais lata, o resultado
do referendo navega por entre estes factores. Têm sido consecutivamente
escamoteados ao longo dos anos e de forma mais premente agora, quando
precisamente mais deles se necessita, os resultados de vários estudos que vêm
dizendo, em modo de alerta, que a desconfiança relativamente à EU tem aumentado
na maioria dos seus países. Desconfiança mais marcada na população trabalhadora
e dentro desta naquela com mais baixos rendimentos. Foi isto que referendos, para
aprovar a constituição europeia em vários países, mostraram: em França, votaram
contra 79% dos trabalhadores manuais, 67% dos trabalhadores de serviços e 98%
dos trabalhadores sindicalizados; Na Holanda, 68% dos trabalhadores; Na
Alemanha, 68% dos trabalhadores manuais e 57% dos trabalhadores de serviços
votaram contra. Percentagens idênticas na Suécia, onde 74% dos trabalhadores
manuais e 54% dos trabalhadores de serviços também votaram contra. O mesmo
ocorreu na Dinamarca. Em
termos de popularidade e confiança na EU os resultados indicam diminuição de
2004 a 2016: Na Alemanha desceu de 58% para 50%, em França desceu de 78% para
38% e em Espanha de 80% para 47%. A Grécia é o país que tem uma percentagem
menor de opiniões favoráveis, apenas 27%. Concretamente no Reino Unido, a
descida foi de 10 pontos percentuais de 2004 a 2016, de 54 para 44%.
Vozes ergueram-se contra
as políticas económicas, financeiras e sociais da UE, vozes contra a sucessiva
e ineficaz austeridade, vozes contra as desigualdades entre o poderio dos mais
ricos e o quase nada dos mais pobres.
Hoje a incerteza
impera, mas não se duvide, sobretudo para as pessoas que acreditam em novas
políticas e novas soluções, que o brexit
poderá ser uma oportunidade, não só para o povo inglês como para os povos de
toda a União, de perceber que existem alternativas, que o círculo vicioso do
pensar e do agir em que mergulham milhões de pessoas pode tornar-se um círculo mais
perfeito. Se há algo que possamos trazer até nós da filosofia andina é que
“nada vai e vem somente sendo, tudo se está a fazer e a desfazer,
transformando-se”.
Julho 2016
martahluís
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